27/06 – por Valmir Santos
AS ROSAS NO JARDIM DE ZULA
O teatro brasileiro tem se apropriado cada vez mais do registro documentário para ler sua época. Lembramos projetos recentes. Dois em São Paulo, da Companhia Mungunzá e Nelson Baskerville, “Luis Antônio – Gabriela”, e de Janaína Leite e Luiz Fernando Marques em criação paralela ao Grupo XIX de Teatro, “Festa de Separação”. E um no Rio de Janeiro da Companhia Amok, “O Dragão”. A cena ”As Rosas no jardim de Zula” é um exemplo dessa interposição do real com a ficção, um procedimento que é caro ao cinema nacional, principalmente ao diretor Eduardo Coutinho, um dos seus expoentes – ele que, não por acaso, anda às voltas com recursos da teatralidade em seus filmes. A criação coletiva traz à tona a história de uma mulher que foi prostituta, teve várias histórias de amor com suas amigas de trabalho e, certo dia, decidiu se casar com um mecânico e ter filhos. A dramaturgia coordenada por Sérgio Abritta adota o ponto de uma filha de Zula, provavelmente a caçula, mas a voz da primeira pessoa com a qual nos encontramos é a da mãe, morta há anos [No debate, a atriz Talita Braga informou que na verdade se trata da voz da filha mesmo, sua mãe na vida real, e que outras pessoas já tinham dado margem para esse tipo de percepção da dramaturgia. Na conversa do dia seguinte, a atriz ouviu a ponderação de que talvez fosse essencial que ela assumisse na narrativa que toda a história tem a ver com a sua própria vida].
Seguindo o raciocínio a partir da cena, a mãe, pois, foi entrevistado pela equipe, conforme declarações em “off” ou nas imagens exibidas no desfecho. Esse estado de ser ou não ser vai descamando durante a apresentação de forma suave, ainda que sua temática seja dura, contundente ao tratar do amor lésbico e sua afirmação – ou seja, a sua perseguição e preconceito nos ambientes e cotidianos de um bordel. Às misérias materiais são costuradas as migalhas afetivas, o terreno do afeto e sua diversidade, um terreno raramente visitado nas pesquisas sociológicas de campo.
O realismo dominante nas falas, cenários e objetos, como o varal de roupas estendidas e uma faca, e a interpretação na chave da mimese corporal e vocal da personagem, revezada por Andréia Quaresma e Talita Braga, essas instâncias chapadas, digamos assim, convivem com uma atmosfera onírica conciliada pelas fotografias projetadas do passado. As atuações, por si, refletiam o nervosismo na estreia, principalmente no caso de Quaresma, um tanto acanhada na cena em que se despe para pôr o vestido que fora usado por sua mãe no casamento – um “desnudamento” que talvez a própria atriz tenha que fazer quanto à filiação dessa história transposta ao palco. De qualquer modo, as atuações constroem gestos e tempos que conformam uma poética para os flashes da descoberta do desejo na perspectiva romântica da mulher que atravessou escuridões e em alguns momentos encontrou luz no final do túnel, como relatou. A emoção de lidar é valorizada na cena.
A inscrição “universo” na camisa da entrevistada em vídeo pelos criadores expressa o tamanho do desafio ao qual a equipe se propôs. Uma ressalva, porém, é justa a exposição da imagem dela ao final, com sua fala coloquial, sua oralidade de expressões que escapam à norma da língua portuguesa e, deslocada, suscitam o riso/deboche em parte do público e expõe aquela alma a mais uma violência das muitas que a vida pôs no caminho dela, de sua família. Zelar por um documento vivo como ela parece uma atitude preciosa diante da bela homenagem que o teatro vem prestar com esta cena.
O GOLPE
Do primeiro ao último segundo, a cena transcorre de maneira calculada, como se fiel aos procedimentos adotados pelo casal protagonista que arma a arapuca a cada profissional que põe os pés naquela casa. A armação, porém, não é dada de bandeja, o público vai destrinchando a trama aos poucos, restando seu encaixa somente nos instantes finais. Mérito dos atores e da direção de Chica Reis em manter esse suspense em banho-maria enquanto estiliza a comédia de costumes com a presença da dona de casa classe média, uma dondoca que se acha a rainha do lar e do mundo e maldiz a torto e a direito; a sua manicure esperta, explorada e faladeira; e o marido canastrão que surge da metade em diante.
A encenação procura ilustrar o enredo ora com um elemento mínimo do cenário, como a sugestiva porta em miniatura – de trás dela partiria o grito dos filhos do casal ouvidos em playback, artifício que também faz parte da trama assassina do casal – ora com a ilustração mais literal da bandeira do Brasil como toalha de trabalho da manicure, dando a entender que aqueles tipos engraçados podem muito bem retratar as famílias que emergiram há pouco à classe C ou a alguns degraus a mais.
Há um forte componente grotesco nesse projeto. A cena é elaborada corretamente para atender a essa expectativa e seus atores, sobretudo eles, dão conta do recado. Quer aquele que vive a manicure com suas ferramentas de tamanhos exagerados, quer a madame com seus tique nervosos, especialmente aquele em que repete sua rotina de trabalho, entre aspas, repetindo a gestualidade do tema infantil Atirei o Pau no Gato. Em meio a tantas extravagâncias, a cena oferece elementos para rir e pensar em que condições estão se dando a mobilidade social brasileira dos últimos anos.
LEILÃO DA TIA CARMEM
O hipertexto é a estratégia usada para organizar a cena. As informações são apresentadas no texto impresso em retroprojeção ao fundo, no lado esquerdo, com páginas substituídas continuadamente. À direta, o espectador pode acompanhar também a reprodução da tela de um computador que acessa uma página do Facebook relacionada à criação, ampliando o espaço cênico na interação da hipermídia. Somam-se outros suportes que vão operar essa narrativa, as frases soltas das atuadoras, seus corpos divididos em pedaços como a carne de açougue, no que o corpete redesenhado como figurino acentua em cada uma.
A partir desses mecanismos, a cena concebida pelas quatro atrizes dispõe dados sobre certa coreana que lhe dá título. Tia Carmem não ganha forma humana ou mesmo se materializa por meio de objetos. Sua “presença” parece ter mais a ver com um avatar invertido, um ser de quem ouvimos falar e construímos uma ideia sobre ele por meio dos fragmentos esparsos da dramaturgia. Seguindo a liberdade de interpretação delegada ao público (e às vezes tamanha liberdade é um problema aqui, com o risco de deixar parte dos interlocutores à deriva), seguindo essa premissa a tal Tia Carmem é a cafetina que despacha suas meninas num leilão. Um leilão que é virtual e tornado presente através da movimentação do corpo-objeto pelo espaço, sua submissão até.
A cena encontra na dança um ponto de apoio subjetivo para jogar com o espectador. As janelas do real e da invenção permitem, por exemplo, abandonar o texto (mesmo porque sua leitura era difícil) e deixar-se levar pelas imagens de fato ou pelas ações das atrizes e suas figuras a caminho do “abatedouro” ou desmilinguidas no sofá a cada vez que o martelo era batido por um “rapaz”, o sujeito oculto da ação. A cena suscita questionamentos quanto ao papel do corpo feminino na era da sua reprodutibilidade técnica, para fazer um paralelo com o diagnóstico de Walter Benjamim a respeito da obra de arte no século passado. Pena que as “cópias” que chegam ao mercado aqui são humanas e descartáveis dentro da lógica consumista introjetada nas sociedades.
HAPPY FLOWERS ACTION SHOW! EXPERIMENTO PERFORMÁTICO FUTURISTA Nº1
A cena promove uma insurreição nos códigos da dramaturgia, do ator e da encenação. Sob o escudo do “experimento performático” os criadores se permitem ousar em todas as fronteiras, inclusive mantendo um tom de certo modo refratário à audiência. Não há concessão, o que depois se revelará coerente com o espírito desta ação. O painel exposto é complexo, investiga o comportamento da mulher num futuro não muito distante, já que identificamos resquícios de repressões vigentes em nossa época, a da mulher contemporânea, mas que no fundo ecoa a mulher milenar e os estigmas que a história da humanidade lhe reservou.
As cores berrantes nas perucas, nos figurinos e adereços podem supor, de largada, uma sessão edulcorada para fácil digestão, o travestismo e a histeria presumidos. O quadro indutor de um concurso de televisão é outra pista falsa, apesar de elencar Clarice Lispector numa das opções do game show e sinalizar que há mais mistérios entre a diversão e a arte do que nossa vã imaginação supõe.
Não demora, e a cena vai à exasperação. A desmontagem dos padrões das mulheres não tem mais volta depois que elas despertam naquela madrugada fictícia, como se fossem as bisnetas d’Os Jatsons, o desenho animado. Elas empilham imagens, sons e palavras que mostram vícios de um estado “falocrático” simbolizado no totem de uma figura masculina, uma silueta desenhada ao fundo, alvo da chuva de ovos que põe os pingos nos “is” do manifesto como expressão de arte. Os objetos infláveis do cenário, como o colchão e a piscina, não aliviam. É muito poderosa a sequência final em que o ator se desvencilha do sutiã e dos gestos femininos para vaticinar a voz da Electra que Heiner Müller pôs na boca da sua Ofélia em “Hamlet-máquina”. Vocifera o ódio e a morte enquanto as duas atrizes, despidas das suas “máscaras”, compartilham a piscina “de esperma”. Brincam na água, beijam-se amorosamente como se aí sim fosse possível ruir a força bruta.