27/06 – por Valmir Santos

AS ROSAS NO JARDIM DE ZULA

O teatro brasileiro tem se apropriado cada vez mais do registro documentário para ler sua época. Lembramos projetos recentes. Dois em São Paulo, da Companhia Mungunzá e Nelson Baskerville, “Luis Antônio – Gabriela”, e de Janaína Leite e Luiz Fernando Marques em criação paralela ao Grupo XIX de Teatro, “Festa de Separação”. E um no Rio de Janeiro da Companhia Amok, “O Dragão”. A cena ”As Rosas no jardim de Zula” é um exemplo dessa interposição do real com a ficção, um procedimento que é caro ao cinema nacional, principalmente ao diretor Eduardo Coutinho, um dos seus expoentes – ele que, não por acaso, anda às voltas com recursos da teatralidade em seus filmes.  A criação coletiva traz à tona a história de uma mulher que foi prostituta, teve várias histórias de amor com suas amigas de trabalho e, certo dia, decidiu se casar com um mecânico e ter filhos. A dramaturgia coordenada por Sérgio Abritta adota o ponto de uma filha de Zula, provavelmente a caçula, mas a voz da primeira pessoa com a qual nos encontramos é a da mãe, morta há anos [No debate, a atriz Talita Braga informou que na verdade se trata da voz da filha mesmo, sua mãe na vida real, e que outras pessoas já tinham dado margem para esse tipo de percepção da dramaturgia. Na conversa do dia seguinte, a atriz ouviu a ponderação de que talvez fosse essencial que ela assumisse na narrativa que toda a história tem a ver com a sua própria vida].

Seguindo o raciocínio a partir da cena, a mãe, pois, foi entrevistado pela equipe, conforme declarações em “off” ou nas imagens exibidas no desfecho. Esse estado de ser ou não ser vai descamando durante a apresentação de forma suave, ainda que sua temática seja dura, contundente ao tratar do amor lésbico e sua afirmação – ou seja, a sua perseguição e preconceito nos ambientes e cotidianos de um bordel. Às misérias materiais são costuradas as migalhas afetivas, o terreno do afeto e sua diversidade, um terreno raramente visitado nas pesquisas sociológicas de campo.

O realismo dominante nas falas, cenários e objetos, como o varal de roupas estendidas e uma faca, e a interpretação na chave da mimese corporal e vocal da personagem, revezada por Andréia Quaresma e Talita Braga, essas instâncias chapadas, digamos assim, convivem com uma atmosfera onírica conciliada pelas fotografias projetadas do passado. As atuações, por si, refletiam o nervosismo na estreia, principalmente no caso de Quaresma, um tanto acanhada na cena em que se despe para pôr o vestido que fora usado por sua mãe no casamento – um “desnudamento” que talvez a própria atriz tenha que fazer quanto à filiação dessa história transposta ao palco. De qualquer modo, as atuações constroem gestos e tempos que conformam uma poética para os flashes da descoberta do desejo na perspectiva romântica da mulher que atravessou escuridões e em alguns momentos encontrou luz no final do túnel, como relatou. A emoção de lidar é valorizada na cena.

A inscrição “universo” na camisa da entrevistada em vídeo pelos criadores expressa o tamanho do desafio ao qual a equipe se propôs. Uma ressalva, porém, é justa a exposição da imagem dela ao final, com sua fala coloquial, sua oralidade de expressões que escapam à norma da língua portuguesa e, deslocada, suscitam o riso/deboche em parte do público e expõe aquela alma a mais uma violência das muitas que a vida pôs no caminho dela, de sua família. Zelar por um documento vivo como ela parece uma atitude preciosa diante da bela homenagem que o teatro vem prestar com esta cena.

O GOLPE

Do primeiro ao último segundo, a cena transcorre de maneira calculada, como se fiel aos procedimentos adotados pelo casal protagonista que arma a arapuca a cada profissional que põe os pés naquela casa. A armação, porém, não é dada de bandeja, o público vai destrinchando a trama aos poucos, restando seu encaixa somente nos instantes finais. Mérito dos atores e da direção de Chica Reis em manter esse suspense em banho-maria enquanto estiliza a comédia de costumes com a presença da dona de casa classe média, uma dondoca que se acha a rainha do lar e do mundo e maldiz a torto e a direito; a sua manicure esperta, explorada e faladeira; e o marido canastrão que surge da metade em diante.

A encenação procura ilustrar o enredo ora com um elemento mínimo do cenário, como a sugestiva porta em miniatura – de trás dela partiria o grito dos filhos do casal ouvidos em playback, artifício que também faz parte da trama assassina do casal – ora com a ilustração mais literal da bandeira do Brasil como toalha de trabalho da manicure, dando a entender que aqueles tipos engraçados podem muito bem retratar as famílias que emergiram há pouco à classe C ou a alguns degraus a mais.

Há um forte componente grotesco nesse projeto. A cena é elaborada corretamente para atender a essa expectativa e seus atores, sobretudo eles, dão conta do recado. Quer aquele que vive a manicure com suas ferramentas de tamanhos exagerados, quer a madame com seus tique nervosos, especialmente aquele em que repete sua rotina de trabalho, entre aspas, repetindo a gestualidade do tema infantil Atirei o Pau no Gato. Em meio a tantas extravagâncias, a cena oferece elementos para rir e pensar em que condições estão se dando a mobilidade social brasileira dos últimos anos.

LEILÃO DA TIA CARMEM

O hipertexto é a estratégia usada para organizar a cena. As informações são apresentadas no texto impresso em retroprojeção ao fundo, no lado esquerdo, com páginas substituídas continuadamente. À direta, o espectador pode acompanhar também a reprodução da tela de um computador que acessa uma página do Facebook relacionada à criação, ampliando o espaço cênico na interação da hipermídia. Somam-se outros suportes que vão operar essa narrativa, as frases soltas das atuadoras, seus corpos divididos em pedaços como a carne de açougue, no que o corpete redesenhado como figurino acentua em cada uma.

A partir desses mecanismos, a cena concebida pelas quatro atrizes dispõe dados sobre certa coreana que lhe dá título. Tia Carmem não ganha forma humana ou mesmo se materializa por meio de objetos. Sua “presença” parece ter mais a ver com um avatar invertido, um ser de quem ouvimos falar e construímos uma ideia sobre ele por meio dos fragmentos esparsos da dramaturgia. Seguindo a liberdade de interpretação delegada ao público (e às vezes tamanha liberdade é um problema aqui, com o risco de deixar parte dos interlocutores à deriva), seguindo essa premissa a tal Tia Carmem é a cafetina que despacha suas meninas num leilão. Um leilão que é virtual e tornado presente através da movimentação do corpo-objeto pelo espaço, sua submissão até.

A cena encontra na dança um ponto de apoio subjetivo para jogar com o espectador. As janelas do real e da invenção permitem, por exemplo, abandonar o texto (mesmo porque sua leitura era difícil) e deixar-se levar pelas imagens de fato ou pelas ações das atrizes e suas figuras a caminho do “abatedouro” ou desmilinguidas no sofá a cada vez que o martelo era batido por um “rapaz”, o sujeito oculto da ação. A cena suscita questionamentos quanto ao papel do corpo feminino na era da sua reprodutibilidade técnica, para fazer um paralelo com o diagnóstico de Walter Benjamim a respeito da obra de arte no século passado. Pena que as “cópias” que chegam ao mercado aqui são humanas e descartáveis dentro da lógica consumista introjetada nas sociedades.

HAPPY FLOWERS ACTION SHOW! EXPERIMENTO PERFORMÁTICO FUTURISTA Nº1

A cena promove uma insurreição nos códigos da dramaturgia, do ator e da encenação. Sob o escudo do “experimento performático” os criadores se permitem ousar em todas as fronteiras, inclusive mantendo um tom de certo modo refratário à audiência. Não há concessão, o que depois se revelará coerente com o espírito desta ação.  O painel exposto é complexo, investiga o comportamento da mulher num futuro não muito distante, já que identificamos resquícios de repressões vigentes em nossa época, a da mulher contemporânea, mas que no fundo ecoa a mulher milenar e os estigmas que a história da humanidade lhe reservou.

As cores berrantes nas perucas, nos figurinos e adereços podem supor, de largada, uma sessão edulcorada para fácil digestão, o travestismo e a histeria presumidos. O quadro indutor de um concurso de televisão é outra pista falsa, apesar de elencar Clarice Lispector numa das opções do game show e sinalizar que há mais mistérios entre a diversão e a arte do que nossa vã imaginação supõe.

Não demora, e a cena vai à exasperação. A desmontagem dos padrões das mulheres não tem mais volta depois que elas despertam naquela madrugada fictícia, como se fossem as bisnetas d’Os Jatsons, o desenho animado. Elas empilham imagens, sons e palavras que mostram vícios de um estado “falocrático” simbolizado no totem de uma figura masculina, uma silueta desenhada ao fundo, alvo da chuva de ovos que põe os pingos nos “is” do manifesto como expressão de arte. Os objetos infláveis do cenário, como o colchão e a piscina, não aliviam. É muito poderosa a sequência final em que o ator se desvencilha do sutiã e dos gestos femininos para vaticinar a voz da Electra que Heiner Müller pôs na boca da sua Ofélia em “Hamlet-máquina”. Vocifera o ódio e a morte enquanto as duas atrizes, despidas das suas “máscaras”, compartilham a piscina “de esperma”. Brincam na água, beijam-se amorosamente como se aí sim fosse possível ruir a força bruta.

26/06 – por Valmir Santos

ROSÂNGELAS

Cena "Rosângelas" - Foto: Guto Muniz

Eis uma obra concebida e interpretada por jovens artistas que deixam transparecer maturidade e clareza em seu conteúdo e sua forma. Maturidade não porque velho. Clareza não porque tudo é dado de forma mastigada. É que a criação comunica um ponto de vista ético entrelido desde as informações da ficha técnica até a presença das atrizes criadoras na construção de um mundo de insegurança e beleza por meio da arte do teatro, um fiapo entre vida e morte no encontro com suas Rosângelas inspiradas no livro “Espelho Diário”, de Rosângela Rennó e Alicia Penna.

Um dos trunfos da cena é a interface com a dança e com as artes plásticas. Há um senso bastante raro de respiração em sentido prático e metafórico. Uma respiração que ajuda a estabelecer um fluxo que dilata a sensação de passagem do tempo (parece durar bem mais que 15 minutos, porque capaz de nos suspender). E de redimensionamento do espaço (as entradas e saídas nas lateralidades da coxia, a simbiose fundo e boca de cena). Ações corporais e falas percorrem paisagens abstratas e outras nem tanto, dando margem para o espectador viajar com autonomia sobre o que vê, escuta, sente. A partitura gestual do teatro-dança e as entrelinhas das frases fornecem pistas para uma leitura poética.

É assim que os vestidos de noiva nunca deveriam durar muito, ter a mesma idade de um casamento longevo, para não trazer maus agouros. E agora que ela está viva é que ela morreu mesmo, conforme a frase lapidar no velório da moça que ressuscitou ou no pensamento de outra mulher, como a sugerir os espasmos claricianos de que o texto também é impregnado.

A vinheta de abertura condensa coreograficamente posturas, molduras e movimentos que depois serão trabalhados em cena, inclusive nos diálogos, como a sugestão de um peixinho de aquário. Uma vez recusada a linearidade, o projeto elabora camadas de lirismo que vão percorrer outras paralelas, como a da mulher apaixonada por uma amiga que não lhe dá bola ao som de uma canção de Roberto Carlos. Uma cadeira de madeira e uma mala grande, vermelha, são os objetos que apóiam a narrativa polissêmica dessas várias Rosângelas em uma, talvez. Se é possível um reparo, as rosas suspensas no cenário e a citação à rosa de Drummond redundam com o nome plural. E outra observação é que a operação de luz sambou em vários momentos, disparando os refletores em vão. A projeção de slides no tablado que as atrizes também ocupam deitadas é uma disposição bem feita no espaço cênico, um lugar de almas serenas e rumorosas.

ENTRE COMÉDIAS

Cena "Entre Comédias" - Foto: Guto Muniz

A cena é um exercício corajoso do que parecem estudantes de teatro debruçando-se sobre a técnica e o espírito da Commedia Dell’Arte. Na abertura, quando esses tipos vão despertando, a expressão corporal e as sonoridades que emitem sugerem um domínio razoável sobre as máscaras e suas extensões. Assim que introduzem a palavras, porém, o a criação revela insuficiências naturais de quem há pouco está tateando o cômico em grau dos mais exigentes.

Os quatro atores e a iluminadora são as únicas funções que constam da ficha técnica. Não somos informados sobre a direção (deduzimos que coletiva) e como foi alinhavada “A comédia dos erros” com a Commedia Dell’Arte. Mas constatamos que a dramaturgia foi ambiciosa no seu intento, e isso é bom, mas sua fragilidade revela-se um estorvo justo à fruição da história sobre os gêmeos patrões e servidores. A construção de uma narrativa própria, dentro da perspectiva dos criadores proponentes, quem sabe deixaria o terreno mais livre para os jogos de aprendizagem e apropriação das máscaras de corpo inteiro.

À inconsistência do roteiro, e a peça de Shakespeare é em si um mar de confusões, soma-se a “Entre comédias” a falta de precisão espacial que leva o público, por exemplo, a divisar de maneira muito borrada a porta de um casarão e o embate de quem está dentro com aqueles que forçam a entrada. Enquanto exercício, portanto, a cena tem sua legitimidade, sua coragem e seu frescor até, mas deveria vir a público somente quando seus criadores acordassem um nível mais exigente de excelência que a técnica pede.

PRETENSÃO

Cena "Pretensão" - Foto: Guto Muniz

A cena é uma comédia de mão cheia. Um roteiro capcioso assinado por diretor afins e destinado a atores inspirados. A dramaturgia de Byron O’Neill (ninguém carrega esse nome impunemente) envereda pelo campo filosófico da pretensão do ovo a ser galinha. Dois homens travam um diálogo com a verve de Woody Allen. No ar, muita picardia e inteligência. Afinal, o público já avista um dos personagens embasbacado pela lata de Coca-cola no cume de um bloco de gelo vertical, feito um altar. Não demora, entra o segundo homem metido em bata de padre, carregando uma privada e o programa deste Cenas Curtas.

A masturbação filosófica sobre a genealogia do ovo, da galinha e de suas respectivas aspirações logo dá brecha para a metalinguagem em citações à sinopse da cena e ao festival. Mas tudo isso vira pretexto para o que a dramaturgia apronta ao guinar para sexo e religião. Daí por diante a sedução toma conta da conversa de tintas absurdas entre um homem fantasiado de padre para ir a uma festa e um padre que revê a abstinência completa dos prazeres do amor.

Alexandre Cioletti e Renato Parara são comediantes com biótipos distintos e estão bastante à vontade na triangulação com o público. Não há afetações histriônicas. Eles valorizam sutilezas e ocupam completamente o espaço vazio em que a arte do ator ou se impõe ou é engolida. O título “Pretensão”, a foto de divulgação que estampa uma privada, essa irreverência sugeria meio caminho para o lugar-comum. No entanto, a cena surpreende positivamente e dá seu recado com sofisticação e promessas de muita libertinagem no paraíso.

AMOSTRA GRÁTIS

Cena "Amostra Grátis" - Foto: Guto Muniz

Há algo de muito triste na alma de todo palhaço. A criação e atuação de Ana Fuchs é digna dessa filiação que, no caso do cinema, pode-se dizer felliniana de nos fazer rir com uma ponta de dor lá no fundo da alma. A radiografia da solidão humana apresentada em “Amostra grátis” é primorosa. A solidez em semear e colher o riso é dada aos olhos do público com muita perspicácia na íris, na postura física, na habilidade em delegar aos objetos e aos figurinos a mesma dignidade suposta na composição da figura cômica plena de humanidade desde a ponta de seu nariz vermelho.

Quando a cena começa, já somos íntimos da casa da palhaça devidamente paramentada. Escovamos os dentes com ela, passamos batom e somos surpreendidos pela campainha. Ao desembrulhar a sua encomenda, ela enreda o público por uma crônica amorosa. Somos cúmplices da sua relação com um manequim com quem monologa sua paixão e uns passos de dança embalada pela canção italiana.

O encantamento passional é tanto que ela quebra o boneco-fetiche, chora sua morte e desvencilha-se rapidamente do luto para uma nova aventura, fita métrica em punhos, para medir os homens que encontrar. Como o espectador que saúda na primeira fila, puxa para si e salta em seu colo.

Ana Fucks tem o público nas mãos e em nenhum momento se gaba disso em cena. Sabe que não está sozinha, carrega consigo a tradição milenar do circo, dos mestres palhaços dos antigos pavilhões e lonas que marcaram o interior e algumas capitais do Brasil no início do século passado. Daí o despojamento serelepe no modo de cativar com sua pesquisa patente em torno do gênero, sua assertividade para com os estados de humor da vida. Sua palhaça jamais excede, até nos momentos de exagero deliberado. Deixa-se guiar pela menor grandeza numa cena que é número circense e drama teatral. Equilibrá-los é a transcendência que nos envolve.

25/06 – por Valmir Santos

UM POUCO DE INFERNO

Cena "Um pouco de inferno" - Foto: Guto Muniz

A cena busca friccionar a performance com a representação teatral e o vídeo, sendo os respectivos campos por si mesmo afeitos à contaminação. De fato, não dá para falar de arte pura nos dias de hoje. Enquanto ação performática, a presença inicial de Mel Varela mobiliza bastante. Seu corpo esguio pendurado de ponta-cabeça, curvando a coluna para mostrar o rosto aflitivo, em meio à fumaça do cigarro, é uma imagem que impacta e quer dar conta da figura da antimãe, apesar dos traços andrógenos.

A essa altura, uma tela já exibiu textos e imagens introdutoras. Postada na lateral do teatro do Galpão Cine Horto, ela concorre para o espectador desviar o olhar da cena, girar para o lado atrás das informações visuais que fazem parte da narrativa. Se tivesse rente à visão do público, a leitura seria mais proveitosa. Pois é lá na projeção que se lê que o pai do sonho é o sublime e a mãe, o pesadelo.

Quando a performer põe os pés no chão, o desenho de luz mais pronunciado reforça a caracterização do rosto, o figurino molda uma alma feminina e a posição estática de Varela no miolo do espaço cênico estabelece, por fim, os vestígios de teatralidade. Sobrepõe-se a ela outra sequência no vídeo que choca pelo bebê que manipula simulando sua tortura e assassinato com uma ferramenta.

Enquanto isso, ao vivo, e de maneira mais turva, já que não se consegue enxergar detalhadamente como se dá a colocação de um tubo que bombeia líquido vermelho para o nariz da performer, que o jorra pela boca, havia uma tensão com a presença da contrarregra e a pouca iluminação… Alguma coisa parecia que não estava dando certo naquela ação. Esse quadro conecta com alguns frames de uma imagem exibida antes, em que essa mesma figura aparece chupando canudinho por um buraco na cabeça de uma boneca.

A palavra manipulação, usada há pouco, é de fato imperativa em “Um pouco de inferno”. O teatro, como a vida, é feita de edição. Escolhas. Escolhas de quem cria, escolhas de quem recebe essa criação e edita o seu próprio olhar sobre ela. A cena dirigida por Juão NIN leva a manipulação ao extremo, satura com a incisão com que se impõe diante do interlocutor. A manipulação como princípio da forma artística para provocar alteridade, para engendrar as ideais, ela se perde aqui em sua derivação negativa, a manipulação que deseja incidir sobre a audiência por meio de um vasto território cohabitado por teatro, vídeo e performance sem alicerçar um deles com mais firmeza e estabelecer plataforma. O hibridismo calculado da criação não vibra.

FÁBRICA DE NUVENS

Cena "Fábrica de Nuvens" - Foto: Guto Muniz

Aquecimento global e sustentabilidade. Seus efeitos já deram tanto o que falar e capitalizar nos dias de hoje que esta cena vem contribuir com uma percepção bem humorada, como a relacioná-los com as platitudes pessoais. A dramaturgia de Daniel Toledo, também diretor e ator, combina o discurso objetivo do cientista na conferência sobre o seu projeto de fabricar nuvens para gerar energias limpa, ávido pelo patrocínio, com as inferências subjetivas da moça que está no mesmo ambiente e, aos poucos, é descolada e ganha mais corpo na narrativa.

Aliás, a cena vai desmanchando o cenário, como os nichos do escritório e do palanquinho cercado por ventiladores. A fala lógica do cientista, por mais que absurda, se contrapõe à falta de coerência do equipamento de projeção que não funciona no início da conferência. Só depois é que exibirá as nuvens passageiras em enquadramento fixo.

O celeiro da razão relativa serve como contrapeso ao discurso claramente nas nuvens da mulher, talvez uma funcionária, uma secretária. Ela desfila seu verniz de auto-ajuda, sua pseudofragilidade diante da violência da moça do caixa que lhe atira as moedinhas na hora do troco; seu compadecimento pelo velhinho que quebrou o carro na hora do rush e não sabe se alguém foi socorrê-lo; sua desolação pelo quintal da casa que recém-comprou porque bate sol, mas passa o dia todo fora e dele nada desfruta, restando-lhe o alívio de deixar os móveis tomando banho de sol enquanto trabalha…

Essas compensações corporativas e íntimas são hilariantes. A paulatina dissolvência do espaço cênico, a presença de um terceiro tipo com um abajur na cabeça, o cientista e a mulher com suas respectivas malas de viagem se retirando de fininha, essas situações todas constituem exemplos da consciência crítica da realidade pelos criadores que provocam de modo inteligente o riso diante das obsessões que de quando em quando acometem a humanidade ou o indivíduo de forma tão bem sustentável.

ACONTECIA EM 1950

Cena "Acontecia em 1950" - Foto: Guto Muniz

O conteúdo da cena é oportuno e urgente. Ela se passa na década de 50, mas o seu motorista é um sujeito conhecido por todos os habitantes das regiões urbanas do Brasil. O trânsito que mói gente todos os dias, em todas as cidades. A criação beira uma aula expositiva do Detran, mas safa-se dela pelos procedimentos de apropriação da linguagem radiofônica, tão poderosa à época, e da expressão universal da mímica em seu pendor cômico. Um dos achados é concentrar a ação em cerca de dois metros quadrados nos quais os quatro atores dão a ver o que o locutor pontua com ênfase ao microfone, nas variações impagáveis da voz de Marcos Nepomuceno.

A criação coletiva opta por soluções elementares, o que não quer dizer um defeito, para traduzir o protagonista, um homem simples, de caráter comum pero no mucho, em pleno cotidiano de 60 anos atrás. O figurino básico agiliza os gestos sincrônicos ou isolados incumbidos de capturar a concisão entre as passagens velozes de tempo e lugar. A mutação acumulada no quadrado diminuto, demarcado no chão por luzinhas multicores, comunica ultrapassagens, quiprocós no semáforo, a prepotência do personagem que ao final é vítima de um acidente.

O ritmo acelerado dessas criaturas patéticas, como define a ficha técnica, denota a pesquisa esmiuçada do tema e do seu tratamento estético. Instiga ver e ouvir como a voz, elemento essencial ao rádio, é desdobrada também como recurso onomatopaico e até na composição de um coro madrigal. Mas o chamado teatro físico é a linguagem dominante e não está lapidada. Há muita sujeira gestual na face, nas mãos, troncos e pés. Como no momento em que ilustram mimicamente o videogame, parênteses que corrompe o período retratado, para deleite do espectador contemporâneo. Não está longe, mais o elenco ainda carece de mais refinamento no quesito gestual – e não estamos falando de virtuosismo – para fazer jus ao jogo de cintura da voz do além que o guia.

ENSAIO PARA OUTRA HISTÓRIA

Cena "Ensaio para outra história" - Foto: Guto Muniz

Os dilemas clássicos do triângulo amoroso pairam como pano de fundo, mas a Companhia do Chá elabora um tratamento mais complexo na forma de levá-lo à cena. Não nega, por exemplo, o choro ridículo do homem que é abandonado por Maria, ou melhor, ameaçado de. Se todas as cartas de amor têm o seu quinhão ridículo, como sentencia o poema de Fernando Pessoa, por que não condensar essas lágrimas de abandono? Por que não estender o ridículo à posição do ser enamorado e da amada desejada por dois, mas que termina saltando na piscina com um abajur na intenção de pôr fim á vida e a esse duelo, em vão? A cena toca esses dilemas do amor romântico.

A criação mimetiza a piscina por meio de um balde d’água transparente que Maria carrega para lá e para cá, despejando parte de seu conteúdo no piso. O espaço cênico é forrado por abajures e luminárias acesas, uma fiarada que crispa excessivamente a iminência do choque elétrico como metáfora do estremecimento da triangulação já sublinhado na bota e luvas de proteção que todos estão usando. O vaivém dos dois homens, invariavelmente carregando objetos, torna o ambiente mais confuso com a objetivo, talvez, de sublinhar o estado de perturbação em que se encontram.

Há uma nítida e demasiada preocupação em inscrever uma dramaturgia do espaço. Felizmente, os diálogos cifrados, mesmo quando monossilábicos, conseguem mapear essa relação tumultuada sem se ater à gênese de cada um dos envolvidos. Esta não é a história, frisa a história escrita e dirigida pelo ator Vinicius Souza. Basta que o público apanhe esses seres no torvelinho das paixões e rupturas, como no ápice de uma ária e seu derramamento sentimental numa ópera, gênero contemplado na trilha.

Um contratempo na cena é a enunciação da palavra e sua desvalorização diante da preocupação do elenco em movimentar-se, em cumprir as marcações. A palavra também é ridícula, convenhamos, mas ela é mediadora fundamental e quase sempre incoerente entre o que se sente e o que se quer expressar. Por isso imaginamos que precisa ser nuançada com mais ímpeto e nuance na tempestade que a criação constrói.

24/06 – Por Valmir Santos

DÊ UMA ÚLTIMA OLHADA NAS COISAS BELAS

Cena "Dê uma última olhada nas coisas belas" - Foto: Guto Muniz

Mirem-se nessas mulheres que poderiam ser de Atenas. Elas são de Belo Horizonte, em 2011, mesmo atemporais e fora de lugar, para nos lembrar que a mitologia não mora apenas na Grécia Antiga e tem vez e luz na contemporaneidade. Os sentimentos e os sentidos do trágico estão dados na capacidade da cena em se fazer ponte ritual. A dolência dos cantos e dos passos lacrimosos; o desabafo sentencioso daquela que está aprisionada, a simbolizar a mãe; a fragilidade da filha que pede sua proteção em outro plano; e a dança do que sugere uma guerreira em sua respiração e movimentos fortes – essas texturas estão bem colocadas no espaço.

A dramaturgia, por sua vez, vai buscar imagens nas obras e personalidades das escritoras Virginia Wolf e Clarice Lispector e da pintora Frida Khalo. Seus planetas doloridos, suas quedas, suas sombras, seus eternos retornos, suas resistências por meio da arte, enfim, elas servem aos questionamentos que pautam o chamado universo feminino. A cena quer afetar por meios sensoriais, instaurar quietude e atenção num ambiente e numa época que favorece a dispersão – vide a trilha musical antes da abertura de cada noite deste festival, que louva o muito barulho por tudo. Será que a alusão à música de Renato Russo foi ouvida, aquela canção que fala dos “sentidos já dormentes”?

É de se questionar como se dá a recepção de uma cena como essa, apresentada de chofre logo na abertura. Como fruir uma cena que transita pela subjetivação após tamanho bombardeio sonoro, que certamente continua reverberando subliminarmente na audiência? Qual o lugar do silêncio no teatro? A cena gera esses ruídos agregados à disposição de manejar a mitologia sem barateá-la.

MAKUNAÍMA: EM A ÁRVORE DO MUNDO E A GRANDE ENCHENTE

Cena "MAKUNAÍMA: em a árvore e a grande enchente" - Foto: Guto Muniz

As matrizes de um teatro ocidental vão por água na recepção desta cena. É a mitologia indígena que dá as cartas neste jogo e rege a travessia do anti-herói pela floresta, um menino que, num suposto retorno à maloca, tem seu caminho recheado por aventuras. Numa narrativa ancorada no gesto e no músculo da imaginação, o solo de Milton Aires recria com originalidade a lenda de mesmo nome que mereceu tratamento na obra-prima de Mário de Andrade e, informa depois o ator paraense, tem no etnólogo alemão Theodor Koch-Grunberg uma referência fundamental sobre os povos indígenas amazônicos, autor de “Makunaíma e Jurupari: cosmogonias ameríndias”.

A linguagem do teatro de animação serve ao desenho fabular sem marcações evidentes na luz ou nos objetos. Há uma relação elementar entre mãos e pés que dispensa a palavra solenemente, radicalizando uma língua inventada que lembra o fonemol que Antunes Filho trabalhou em “Nova velha estória”, o espetáculo de 1991 que releu Chapeuzinho Vermelho.

“Makunaíma: em a árvore do mundo e a grande enchente” subordinada a língua verbal a uma cosmogonia que vira o mundo literalmente de ponta cabeça. É genial a capacidade do atuador em estender à palma e aos dedos das extremidades do corpo, pés e mãos de novo, os seres com os quais o personagem se relaciona em sua fantasia de brincar. Do mesmo modo, a desafiadora mutação de um saco de lona que nos convence poderosamente se tratar de um jacaré ou uma onça. Ele trava uma luta com o bicho e o pendura nas costas após dominá-lo. Ou ainda o pássaro que ganha vida a partir do ornamento da sua cabeça e com o qual ele brinca desviando de voos rasantes.

A cena é prenhe de ancestralidade, alarga a percepção do ser com a natureza, dá notícias da brasilidade no drible de obstáculos. A camisa da seleção brasileira é também a pele animal da condição humana entre a alma e o caráter. Ou sem caráter, como elogia Andrade. O desfecho com o parto e o choro estridente, além de sugerir alusão à clássica passagem de Grande Otelo no filme adaptado e rodado por Joaquim Pedro de Andrade, ilustra como a vida é relativa e pode transcorrer de trás para frente – um achado sobre a formação do mito e, às vezes, da realidade lá fora.

CONVERSA SÉRIA DE CALCINHA E SOUTIEN

Cena "Conversa Séria de Calcinha e Soutien" - Foto: Guto Muniz

A um passo da eternidade. É lá nesse hiato pós-morte que “Conversa séria de calcinha e soutien” monta seu linóleo branco, quadrado, para circunscrever uma antessala que divisa mais o inferno do que o céu. O título e a atmosfera inicial enganam – e a mentira aqui é uma virtude teatral. A meia máscara da Commedia Dell”Arte assusta na combinação com calcinhas, sutiãs e cuecas pretas. A esse estranhamento vão se somando outros, como a voz também familiar à comédia popular medieval e o teor absurdo dos diálogos.

Aos poucos, os códigos de uma filiação filosófica existencialista contornam o banal e dão um tônus mais dramático à figura paripatética da mulher que faz uma espécie de balanço do que viveu (o relato agudo de um aborto, por exemplo, mas sem hipervalorizá-lo). Ela tenta decifrar o que lhe aguarda agora.

Para equilibrar-se nos deslimites do cômico e do drama, a base é a expressão corporal do elenco, em particular da atriz que representa Rosa, a tal mulher, e seu caminhar de uma Penélope Charmosa estilizada dos desenhos animados. Outro elemento que contracena com inventividade é a música incidental, capaz de narrar e fazer a cena respirar sem redundar. Ao cabo, a cena consegue sintetizar esse território metafísico em que é possível prospectar horizontes à maneira da atualização de um Ionesco, por exemplo.

SOBRE-VIVENTES

Cena "Sobre-viventes" - Foto: Guto Muniz

Pétalas e pedras de gelo atiradas no olho do liquidificador são indícios de que “Sobre-viventes” veio para quebrar as convenções do que é sólido (a moral) e do que é romântico (o amor). A um só tempo atores, autores e personagens, ele e ela são embalados por canções etílicas e embarcam numa bad trip que a quantidade de garrafas no cenário dá a entender que será profunda. Deitam falas sobre as ilusões perdidas dos anos 80, sobre comportamentos sexuais, sobre o universo em torno de seus umbigos. A dramaturgia inclui citações a Ana Cristina César e a Caio Fernando de Abreu, escritores ícones na transgressão com causa: ou seja, sem burilar a linguagem para expressar sua arte eles nada seriam. (O enredo, sabemos depois, tem forte inspiração no conto “Os sobreviventes”, do escritor gaúcho).

E esta cena faz o inverso, pouco transgride. O discurso formal insinuado no início é esmagado pela metralhadora verbal de pretensões anarquistas e de fundo niilista, sobretudo na voz dela. Quer desconstruir o teatro estabelecido, mas não elabora ferramentas para tal. Abre parênteses irônicos, “agora vamos fazer teatro”, e nada. Predomina uma visão neorromântica bastante difusa sobre a impotência de fazer arte, de amar; sobre o desejo lésbico e o desejo gay; sobre a escatologia, e por aí vai.

A trilha sonora tenta preencher o vácuo em que essa criação escolheu se meter. É Caetano Veloso quem vem ao socorro de instaurar poética da qual ele, ela e a encenação abdicam. É o Camisa de Vênus que injeta adrenalina de fato, uma vez que a inércia é veemente no projeto. Culmina a demagógica passagem da inclusão de outras pessoas convidadas a interagir in loco, um aglomerado saltitante para tentar reafirmar o caráter libertário que não vinga. Quem sabe, não vinga justo porque o poder do teatro não está fora dele. Até para rejeitá-lo é preciso encará-lo de frente e não elencar desculpas de quem já tentou de tudo. O abismo costuma ser um grande aliado dos criadores. A literatura de Ana C. e Caio F. jamais vão mofar porque eles foram dilacerados em seus processos criativos. “Sobre-viventes”, a cena, não comunica a viagem que a fez chegar até aqui. Ela só se esquiva. Se esquiva sem esgrima, o ato artístico.

PAINEL DIVERSO MARCA ENCERRAMENTO DO 12º FESTIVAL DE CENAS CURTAS

26/06 – Por Soraya Belusi

O espírito de investigação, o desejo do risco e a tentativa de jogar-se a lugares mais indefinidos dentro de uma linguagem cênica parece ter chegado ao último dia deste 12º Festival de Cenas Curtas. A noite de domingo começou com o mergulho de Sérgio Abritta e seu grupo de artistas-criadores (como as atrizes Talita Braga e Andréia Quaresma) na busca de construir uma linguagem a que chamaram teatro-documentário.

A partir da história de uma personagem real, cujas imagens e depoimento aparecem ao fim da representação, o coletivo apresentou a cena “As Rosas no Jardim de Zula”. Como estrutura dramatúrgica, o grupo optou pelo revezamento das atrizes entre a função de personagem e narrador, o que confere dinâmica à encenação, assim como o uso de elementos como o off. Porém, algumas imagens parecem soltas na dramaturgia, como também soam bruscos os cortes e passagens entre um momento e outro. A entrada do elemento da metalinguagem, por exemplo, parece mais efeito que necessidade do discurso que vinha sendo construído.

O objetivo da cena, segundo a sinopse, era desvendar o humano a partir de uma figura comum e isso se deu de fato no trabalho: o humano está lá, com suas idiossincrasias, desejos, loucuras, bizarrices. É engraçado e tocante, vítima e pecadora. Mas, em alguns momentos, essa busca pelo tocante esbarra no adocicado por demais. Falta à encenação um pouco da dureza que Zula traz em meio ao seu jardim.

Cena "As Rosas no Jardim de Zula" - Foto: Guto Muniz

A segunda cena da noite foi “O Golpe”, com direção de Cida Reis e texto de Wesley Marchiori, conhecido no meio teatral da cidade por sua pesquisa com o gênero da comédia. E é essa a prioridade da cena que os atores Carluty Ferreira, Patrícia Thomaz e Rogério Alves defenderam nesta noite de encerramento do evento. A partir da história de um casal capaz das mais diversas artimanhas para se dar bem, a sinopse promete doses de humor grotesco e deboche (…), com muita ousadia. Mas, na verdade, a graça vem de elementos como o exagero (nas cores, nas escolhas de figurino, no tamanho dos objetos de cena, nos efeitos de luz e som) e na linguagem dos personagens (em piadas já mais que utilizadas, como o “engano” com o nome da personagem manicure). O grotesco prometido na sinopse não se concretiza como estética ou linguagem e a cena se desenvolve como tantas outras esquetes cômicas que já conhecemos e que os criadores envolvidos também. Dar continuidade a uma pesquisa não significa repetir lugares já antes navegados.

Cena "O Golpe" - Foto: Guto Muniz

“Leilão da Tia Carmem”, sem dúvida, foi a cena que levou mais ao extremo a proposição de experimentar a construção de um trabalho peculiar. Dança, vídeo e literatura convergem em uma só linguagem para questionar o lugar da mulher na sociedade contemporânea, utilizando como elemento de dramaturgia até mesmo as redes sociais – mais uma plataforma de exibição/exploração/submissão.

O trabalho trafega por camadas de apreensão que não passam muito pela emoção ou pela poética. É na união desses elementos, frios em sua maioria (o virtual, o projetado, o microfonado), que ela busca camadas de diálogo com o espectador. A cena, confesso, demanda de mim um pouco mais de tempo para ser decodificada, percebida, redimensionada.

Cena "Leilão da Tia Carmem" - Foto: Guto Muniz

A performance “Happy Flowers Action Show! Experimento Performático Futurista” encerrou esta edição do Cenas Curtas do Galpão. O trabalho parte da premissa de que, num mundo sem homens, resta às mulheres a disputa pelo papel de reprodutoras. Numa mistura de referências apropriadas de moldes televisivos tão caros ao universo feminino (como a telenovela e o talk show), o trabalho pretende quebrar com padrões que acaba reproduzindo ao apresentar o “fracasso” da mulher contemporânea que termina, no fim das contas, tendo que se ver numa banheira de plástico aos beijos com outra mulher contemporânea – a dramaturgia, aliás, é um dos pontos que ficaram um tanto nublados no desenvolvimento da cena, não deixando claro neste painel de personagens sobre o que estão falando afinal. Muita coisa acontece, mas pouca coisa diz por que está ali.

Cena "Happy Flowers Action Show - Experimento performático futurista nº1" - Foto: Guto Muniz

25/06 – Por Valmir Santos

NEM O PIPOQUEIRO

Cena "Nem o pipoqueiro" - Foto: Guto Muniz

No início não era o verbo, mas o silêncio, a inação. O impasse, a impossibilidade. “Nem o Pipoqueiro” subverte a angústia dos 15 minutos e trabalha com o negativo das expectativas. As vedetes estão em cena, mas ninguém vem vê-las. Vemos. O mote do antiespetáculo de teatro de revista é pôr em xeque o significado da arte ou, melhor, do artista. O drama da decadência é tratado com humor intimista, a frustração das moças que cobiçam o sucesso, a capa da revista, o troféu do grande prêmio de teatro.

Um vídeo é incorporado com naturalidade para espichar a cena para o lado de fora. A atriz-personagem, que atende por Brasil, sai do prédio do Cine Horto, vai ao boteco vizinho e compra cervejas. Essa sequencia é editada em breves segundos, e logo a vedete retorna com as cervejas. Eis a pista para a gangorra realidade e ficção que faz avançar ao painel mais abrangente da arte e da cultura. Súbito, um vídeo abre uma janela com personalidades locais e nacionais. O desvio abrupto do cabaré artificializa o retorno ao ambiente. Uma quarta pessoa sai da plateia, a própria diretora Patrícia Teles (que coassina com Dayane Lacerda). Ela intervém no enredo, dá orientações, embaralha mais um pouco as noções de dentro e de fora da cena e é confrontada desabusadamente pelas atrizes Cristina Madeira, Fabiana Brasil e Mariana Teixeira.

São propostas situações que instigam a empatia com o público, mas as alinhava de forma frágil – é curioso que o projeto dispense a função de dramaturgia ou não nomeie concepção ou criação, apenas as funções de direção, codireção e o elenco. A cena não deposita a mesma sofisticação das ideias no preparo das atrizes. É preciso mais apuro e timing da performance, do comediante – e esse projeto remete ao desbunde do grupo carioca Adrúbal Trouxe o Trombone nos anos 1970 –, para dar conta dessa curva entre o absurdo existencial das vedetes em crise, a reflexão institucional do país e a mão na bunda que fecha a cena de forma graciosa. Ou seria um pé na bunda?

QUINTAL

Cena "Quintal" - Foto: Guto Muniz

“Quintal”, da Casca de Nós Cia. de Teatro, são duas crianças, a velha e a nova. Dois meninos em busca de um pai que se foi. A esperança de sua volta é o que sustenta o realismo fantástico do mundo que eles carregam por meio de suas roupas, a lata d’água, as bolinhas. Do início ao fim, o espaço nu ganha composições por meio das mãos da dupla, que o constrói ou o desmancha.

Estamos pisando um universo pequeno, que cabe na ponta de uma agulha, como informa a imagem inicial da dramaturgia banhada em lirismo rapsódico, aquele que mistura vozes narradoras e diálogos no transcorrer da ação, trazendo ecos da infância nos contos e romances de Guimarães Rosa em que a brincadeira com ossos animais simbolizam as formas da imaginação resistir e erguer beleza diante do precário.

A direção de Joaquim Elias dá conta de apresentar esse percurso e essas paisagens do texto depositando tudo na presença dos atores, no corpo transportador dos sonhos, das fantasias e das dores. Nas atuações de Francis Severino e João Filho, este também dramaturgo, enxergamos a beira do rio e somos cúmplices do caçula no sequestro da água a ser punido pelo pai do céu e da terra, como provoca em raro momento de descontração o primogênito, um ser que cuida e roga ser cuidado numa oração. O pendor cristão é insinuado na relação culpa/pecado, mas não se sobrepõe ao sagrado em sua dimensão mais essencial, despida do dogma.

O ato de correr em círculo espelha a temporalidade que também está contida na palavra. Esta, como signo substancial nesse experimento, às vezes é abafada pelo movimento físico e chega a ser maltratada pelo recurso do off na abertura, dissonante com a proposta. A dramaturgia de “Quintal” é uma fábula sobre o abandono. Seu extração poético aponta o diagnóstico contundente sobre a ausência dos adultos, um tema urgente nas sociedades contemporâneas ao questionar o que elas estão fazendo com suas crianças.

…E PEÇA QUE NOS PERDOE

Cena "... e peça que nos perdoe" - Foto: Guto Muniz

A sombra projetada pela ribalta, a lanterna que corta a cena nas mãos dos atores, a combinação cinza do preto com o branco. Os elementos expressionistas estão pactuados com muita clareza em “… E peça que nos perdoe”, criada em colaboração dos atores com a diretora Lira Ribas. O espaço cênico é ocupado com muita propriedade do que se quer narrar, inclusive na partitura gestual de aproximação com o teatro-dança no deslocamento coral da abertura e no cortejo fúnebre em que o caixão é dado por um tecido branco, o mesmo transformado em mesa na hora do jantar espectral.

Essa moldura estética corresponde ao conteúdo fragmentário dos seres que habitam aquela casa da morte, como a lembrar um teto da Bernarda Alba de Lorca ou o típico ambiente claustrofóbico das histórias de Kafka. Uma noiva careca abandonada no altar e condenada à virgindade, no desempenho alegórico contrastante por um ator, e um casamento que se esfacela em plena bodas de prata são alguns dos lampejos que surgem sob o caos. Até que irrompe uma figura patriarcal que vem organizar e localizar aquelas situações todas no que diz ser o intervalo entre o sonho e o pesadelo, o plano do delírio.

A voz que vem salvaguardar o fluxo num solilóquio dá a entender que a cena se ressente de não dizer por si mesma. Ou seja, as soluções espaciais e imagéticas impactam, mas dissociadas de um eixo dramatúrgico , de uma base que apóie a leitura do espectador. Quando esse aceno é concretizado por meio da palavra, da intervenção do raciocínio, aí já é tarde e contradiz todo o passeio fantasmagórico que nos conduziu até então.

ESTUDOS PARA UM MELODRAMA

Cena "Estudos para um melodrama" - Foto: Guto Muniz

Com direção de Marcelo Veronez e dramaturgia e concepção do coletivo Todos Comemoram, “Estudos para um melodrama” explicita no título a que veio. Faz uma paródia do gênero, das telenovelas às radionovelas, passando pelo cancioneiro passional, do tango a Maria Bethânia; pelo teatro via Nelson Rodrigues; e pelo cinema, indiretamente, ao evocar a atmosfera dos filmes de Pedro Almodóvar e citar uma das atrizes referenciais em sua obra, Carmem Moura.

No início, há um voo panorâmico sobre essas referências, como que uma introdução. É o caso da pontuação sobre as rubricas de Nelson Rodrigues que demarcam de vez a hipérbole como regra no jogo que está se armando. O roteiro então foca a história propriamente dita, o triângulo que envolve as figuras da empregada, da adúltera e da conservadora. Ingredientes como a traição, um crime e a suspeição saltam aos olhos.

Estilizar o melodrama tem a ver com nuanças do gesto, da voz, do equilíbrio na linha tênue em que o exagero, essa expressão demasiado humana, pode descambar para lugar nenhum, pôr tudo a perder. Pode resultar um fim em si mesmo, não um meio. As atuações ultrapassam esse limite em vários momentos. A estereotipia é apartada de uma subjetividade mínima que nos dê a ver a “verdade” do sentimento em evidência. Não basta lamber a enceradeira retrô, é preciso nos convencer do quanto esse objeto está “humanizado” como extensão do prazer na dança que a atriz estabelece com ele.

Soa paradoxo, mas parece que “Estudos para o melodrama” foi traído pelo gênero que abraça. A sensação de que o transbordamento também precisa ser editado fica mais clara com os falsos finais. Quando um homem pergunta quem apagou a luz logo após o que seria o derradeiro blecaute, surpreendendo parte do público que aplaudia, ali a boa ideia já estava lapidada. Mas vem a reiteração e a síntese, tão cara à chamada cena curta, é dissolvida.

BOAS EXECUÇÕES, SEM ALTOS NÍVEIS DE DIFICULDADE

25/06 – Por Soraya Belusi

O Festival de Cenas Curtas tem como uma de suas principais características o estímulo à experimentação – de linguagens, funções e poéticas. Outra marca dessas doze edições é o espírito competitivo – assim como no mundo dos esportes, com “fair play”, na melhor lógica do vença o melhor. Esse preâmbulo é apenas para apontar o caminho pelo qual escolhi lançar meu olhar sobre as quatro cenas apresentadas na noite de sábado.

“Rosângelas” abriu a jornada de apresentações. Inspiradas e penetradas pelas histórias reunidas e recriadas pela artista plástica Rosângela Rennó e pela escritora Alicia Penna no diário-colagem “Espelho Diário”, as atrizes Antônia Claret e Renata Andréa levaram para a cena um diálogo não-realista no que se refere à construção das personagens – ou seria uma apenas com suas duplas (ou seriam múltiplas) facetas? É justamente essa pergunta/possibilidade apresentada na dramaturgia e no jogo entre as atrizes que talvez mais traduza e potencialize o diálogo entre a cena apresentada e o objeto inicial de sua inspiração.

O que vou chamar aqui de “exercícios de dificuldade”, em referência aos procedimentos de uma modalidade esportiva tão cara a mim, são as tentativas de elaboração (ou questionamento, desconstrução…) das camadas que compõem a cena – assim como numa prova de ginástica olímpica, em que o nível de complexidade do que se apresenta é um dos determinantes para a “nota” final. As criadoras da cena “Rosângelas” optaram
por uma abordagem não realista no trabalho das atrizes, que construíram ações físicas que iam se repetindo e se ressiginificando ao longo da encenação. Isso permitiu ainda um jogo rítmico interessante ao trabalho, com partituras tanto sonoras quanto corporais.
A dramaturgia e o elenco trafegavam com naturalidade pelos diferentes momentos que a cena pedia, pela narração, pela quebra da quarta parede, a brincadeira do “metateatro”.

“Rosângelas” se propõe a ser uma cartografia de pequenos acontecimentos, mas é aí que peca na execução. Em alguns momentos, a sensação é de que a mise-em-scene estava mais bem resolvida que o conteúdo da cena em si. Quando consegue nos mostrar as mínimas pílulas de poesia (seja quando fala do abismo ou do fiapo que nos separa da vida e da morte ou da companhia silenciosa de um peixe), a cena cativa com sua mistura de humor e delicadeza.

Na seqüência, foi a vez de “Entre Comédias”, trabalho de quatro atores de Londrina, que parte da pesquisa dos tipos da commedia dell’arte em diálogo com o texto “A Comédia dos Erros”, de William Shakespeare. Aquele preâmbulo inicial, aqui, cabe muito bem como ponto de partida. Se uma das premissas do evento é justamente experimentar, significa tentar uma jogada mais ousada para marcar o gol. Foi justamente isso o que faltou ao grupo de criadores.

Embora com trabalhos defensáveis na utilização das máscaras expressivas (bom domínio corporal e vocal de alguns atores, assim como os estados corporais de cada personagem e a triangulação com a platéia), faltou à cena a pretensão (voltaremos a falar desse termo…) de lançar desafios ao público e, até mesmo, aos seus criadores. A sensação foi de que, após os minutos iniciais, o trabalho foi perdendo força e, consequentemente, a atenção do público. Levando em consideração o nível de elaboração a que o teatro contemporâneo atingiu e propõe, num espaço de experimentação exige-se um pouco mais que um “exercício bem realizado”.

Grande era a expectativa em torno da terceira cena apresentada na noite, “Pretensão”. Primeiro, pelo time de criadores, que inclui o diretor Byron O’Neill (talentoso artista nas linguagens do vídeo e do teatro e que já foi responsável por bons momentos do Cenas Curtas) e o ator Alexandre Cioletti (tão talentoso quanto o parceiro de criação e de trajetória respeitável no teatro). Depois, com uma sinopse dessas (“A pretensão de um ovo é ser no mínimo uma galinha. E isso é muito pretensioso”), não se sabe o que vem pela frente.

É no universo do absurdo que identifico o trabalho. A começar pela imagem inicial, com a Coca-Cola em cima de uma barra de gelo iluminada pelo foco de luz. E é assim que a coisa se desenvolve, por exemplo, com a entrada em cena de um homem de bata carregando um vaso sanitário. O coletivo constrói um jogo divertido e inteligente no jogo de palavras e de sentidos (seja no que se refere à discussão do que se pretende ser a própria cena, sobre o conceito de pretensão) e tem como ponto alto o diálogo entre os dois bons atores, Cioletti, já citado, e Renato Parara. Mas, embora tenha “viradas” surpreendentes no rumo da cena, o trabalho parece ir se perdendo ao longo do caminho, saindo do que poderia ser uma brincadeira-reflexão-filosófica-teatral para uma linha do besteirol que diminui “as pretensões” do trabalho que, além de ovo, tinha tudo para se tornar, de fato, galinha.

Ana Fuchs, de Porto Alegre, teve a missão de encerrar a noite de apresentações. E, enfim, chegou o clown a esta edição do Cenas Curtas (a linguagem está sempre presente no evento e proporciona, tradicionalmente, bons momentos). “Amostra Grátis” mostrou uma atriz da linguagem do clown que entende seu objeto de pesquisa com inteligência, domínio dos elementos do jogo do palhaço, da relação com a plateia, do tempo da “piada”, da utilização dos opostos emocionais. Para contar a história dessa solitária palhaça que busca o amor a qualquer custo, ela constrói uma dramaturgia bem redondinha, com a preparação para o encontro, a sedução do objeto de conquista, a alegria da ilusão do amor até chegar ao fracasso de se deparar com a realidade de que ele não existe.

A criadora, com todas as qualidades que demonstrou em cena, parecia confortável em suas escolhas, o que pode soar como algo seguro demais. Assim como no circo, fica a vontade de ver algo que lhe coloque num estado de alerta, na fronteira do perigo. Talvez, um elemento que podia ter feito parte de todos os trabalhos da noite: o pulo vertiginoso rumo ao abismo (claro, com a rede embaixo)!

NOITE HETEROGÊNEA EM PROPOSTAS E EM RESULTADOS

24/06 – Por Soraya Belusi

A terceira noite do 12º Festival de Cenas Curtas começou com a apresentação de “Um Pouco de Inferno”, do Rio Grande do Norte. A partir do arquétipo da matriarca (a que gera, a que sangra, a que padece), o grupo propõe uma mistura de linguagens amparada pelo vídeo e pela performance. O letreiro da projeção, com as letras de ponta a cabeça, já evidenciam que a visão da progenitora será apresentada por um outro ângulo.

Fica clara a proposta do grupo na construção dessa figura anti-mãe. Os caminhos é que talvez mereçam ser questionados. A performer Mel Varela atinge um estado quase decompositivo em cena, lento, como se o tempo tivesse parado, criando belas imagens em cena, como quando o sangue se esvai de seu corpo e invade o palco. A questão é que toda a dramaturgia e ação da cena se realiza na projeção. É ali que a história, de fato, é contada. A presença no palco parece soar como ilustração da narrativa apresentada no vídeo, deixando no público o desejo de saber como esse conflito poderia se dar e se resolver em cena.

“Fábrica de Nuvens” veio em seguida na programação desta terceira noite. O público é apresentado a três personagens que repetem ações “automaticamente”. Numa espécie de introdução, um desses personagens assume a boca de cena para fazer uma “explicação” de seu projeto para combater o aquecimento global. O tom “científico” gera estranhamento e graça, começando bem a cena e dando um panorama de como e onde se passa a ação. Os outros personagens em cena, porém, estão com a cabeça em outro lugar. Um deles, aliás, fica meio sem justificativa no trabalho, transitando pelo espaço sem ter, de fato, “algo a dizer” ou “a fazer”.

É na contraposição entre os grandes dilemas da humanidade e os verdadeiros problemas do cotidiano (os sonhos, desilusões e as esperanças de que algo aconteça) que reside a potência da cena, que ganha mais força quando começa a explanação da personagem feminina. O texto tem bons momentos, mas a dramaturgia em geral parece um pouco confusa. Assim como a utilização do espaço, em que as passagens e as mudanças de cenário parecem acontecer sem muita razão de ser. Outra escolha questionável é as nuances da iluminação, o tempo todo fria e que escondia os atores e, muitas vezes, também os elementos cenográficos.

Forma e conteúdo em sintonia. Esse é o principal mérito da terceira cena a ser apresentada, “Acontecia em 1950”. A partir da história do Pateta, tão conhecida nos desenhos animados, o grupo constrói (apenas com o corpo, com a voz e com o auxílio de um simples retângulo iluminado) a situação de um homem que, ao volante, se transforma em um monstro. E, se o ponto de partida é um desenho animado, é na busca de diálogo com esta linguagem inicial que o coletivo se apóia com elementos como a dublagem, o “exagero” na atuações, as referências ao videogame. É uma cena que não se propõe a “grandes voos”, mas plaina na altura que pretende atingir.

A noite se encerrou com “Ensaio para outra História”, trabalho da Cia. do Chá. Para contar a história de um triângulo amoroso – cujo mote é claramente inspirado em “História de Amor (Últimos Capítulos) – , o diretor Vinícius Souza traz para a cena não apenas os três ângulos dessa narrativa (o do abandonado, o da mulher e o do outro homem), como também camadas temporais, enriquecendo sua dramaturgia e suas possibilidades de interpretação, talvez o ponto mais forte do trabalho.

A composição do espaço cênico e a utilização dos objetos também se justifica na própria dramaturgia, que opta pela idéia da convenção para estabelecer signos a serem identificados pelo público (como o balde que serve como símbolo do corpo molhado, da chuva que cai, da piscina…).

O ponto que apresenta alguma fragilidade é a direção, principalmente no que se refere à utilização do espaço pelos atores, que, muitas vezes, pelo excesso de deslocamentos, tiravam o foco de uma outra ação que parecia mais importante.

CENAS EM BUSCA DE UMA LINGUAGEM

23 de junho – por Soraya Belusi
 
“Uma fé enorme em qualquer coisa”, diz a personagem-atriz-narradora de “Sobre-viventes”, último trabalho a entrar no palco desta segunda noite do 12 º Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto. A frase, proferida por Dayane Lacerda, pode nos servir como uma espécie de síntese para buscar uma interpretação sobre as escolhas formais das cenas que integraram a programação de ontem.

A primeira cena a se apresentar foi “Dê uma Última Olhada nas Coisas Belas”, com direção de Cynthia Paulino. A equipe do trabalho é formada por “antigos” parceiros de pesquisa, como Marina Arthuzzi e Paolo Mandatti. Isso diz muito do que se vê em cena. O “grupo” traz neste trabalho de 15 minutos algumas das questões que já vem investigando de maneira pontual em outras obras, o que pode ser entendido como a busca de uma linguagem (“uma fé enorme em qualquer coisa”).

É a partir de elementos ritualísticos (como o canto e a lavagem do corpo) e de figuras mitológicas (representações do feminino, com seus seios e sexos, e suas múltiplas facetas) que a encenação constrói o seu discurso. É num tempo espaço atemporal, indefinido, que esse discurso – muitas vezes referencial a mulheres que refletiram sobre suas condições de abandono, solidão e desespero (Virgínia, Clarice?)  –, concretiza-se.

Há um esmero na construção da forma, tanto no que diz respeito à cena, quanto nas palavras. Mas a escolha pelo tom literário pode talvez explicar o que impede que, de alguma maneira, que o discurso deixe de ser apenas formal e agradável aos ouvidos para construir sentido, ocupar a sala do teatro, afetar e penetrar o público.

A segunda cena foi beber no anti-herói nacional, na figura de Macunaíma, para construir uma reflexão sobre a miséria humana e busca de sobrevivência.  É com as referências mitológicas indígenas que o ator Milton Aires, também responsável pela pesquisa e criação do trabalho, dialoga na construção de “Makunaíma: Em Árvore do Mundo e a Grande Enchente”. Milton opta pela investigação de um discurso construído corporal e vocalmente, com potência e vitalidade, mas sem o desenho cuidadoso de cada intenção e imagem, cada grunhido ou gromelô, para que a plateia possa, junto com ele, entrar nesse universo de “embate” entre homem, vida e natureza. A dramaturgia se desenvolve de maneira um tanto confusa, o que é reforçado pela não-clareza das intenções, gestos e/ou ações.

Na sequência, foi a vez de “Conversa Séria de Calcinha e Soutien”  ganhar o palco. O trabalho, dirigido por João Valadares, escolhe a máscara como linguagem corporal e vocal  na atuação do elenco. As referências parecem partir mesmo das máscaras expressivas da commedia Dell arte (embora reinterpetadas em cor e forma) e a seus tipos (o capitão, o doutor, a donzela…). A questão é que, se a escolha formal de fato foi essa, o trabalho de máscaras merece ser aprofundado, trabalhado, assumido. É preciso que essa “forma” sugerida pelo uso da máscara vá além, torne-se orgânica, dê ainda mais vida ao “tipo”, traga estados e relações diferenciadas.

Como base para a dramaturgia, a discussão entre o que é vida e o que já deixou de ser ou existe depois dela, o que é crueldade e o que é amor, entre o que sou eu e o que é o outro, uma espécie de releitura de questões que tanto inspiraram Sartre e seu “Entre Quatro Paredes”  (referência assumida pelo próprio coletivo de criadores em conversa com a imprensa). Neste fragmento de 15 minutos, todas essas questões talvez precisassem ser tratadas com um pouco mais de clareza e organização dramatúrgica para um entendimento mais “redondo” dos pontos que o trabalho pretende tocar.

“Uma fé enorme em qualquer coisa”. Está aí algo que esse trio de parceiras-criadoras (Marina Arthuzzi, Marina Viana e Mariana Blanco) realmente compartilha. Integrantes da Cia. Primeira Campainha, as três vêm em todos os seus trabalhos utilizando elementos, temáticas e escolhas formais recorrentes, uma espécie de afirmação de identidade, marcada pelo humor, pela capacidade de construir e desconstruir realidades cênicas, pela discussão sobre sexualidade, relações pessoais e amorosas, um turbilhão de informações e citações intelectuais batidas, neste caso literalmente, em um  liquidificador. 

“Sobre-viventes” é trabalho de voltagem 220, na quinta marcha, no volume máximo, como tudo o que essas criadoras tocam. Consegue, dramaturgicamente, trafegar entre camadas distintas sem esforço, passando sem sobressaltos pelo discurso do personagem, para o do ator, para o do narrador, e, assim, ciclicamente.  O trabalho tem uma escolha pela anarquia que, em si, contém uma ordem muito particular, destilando acidez pop-punk-rock pelos poros (talvez em exagero em momentos como a invasão do palco numa espécie de catarse coletiva).

É no limite que “Sobre-viventes”, assim como os outros estudos-exercícios-espetáculos, se instala (e é isso que o torna especial). Entre o que já foi feito e o que de novo pode aparecer, entre a construção de um pensamento e uma verborragia cheia de referências, de construir a poesia em cena e transformá-la, quando o teatro realmente acontece, em “beleza” e emoção (talvez, uma pitada de jazz nesse concerto do Mettalica!). Esses são os momentos mais potentes do trabalho. É com fome, sede, gana, irresponsabilidade e confiança que o grupo mostra sua “fé enorme” no que leva para a cena. Muitas vezes, a ponto de “deixar o público sem ar”… talvez, falte só respirar um pouquinho…

NOITE DE METATEATRO, TOQUES EXPRESSIONISTAS, COMPONENTES POÉTICOS E RESPEITO AO MELODRAMA.

22/06 – por Soraya Belusi

É no calor da cena que nasce esse texto. Logo após as primeiras apresentações deste 12º  Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto. Nesta primeira noite, os trabalhos que foram mostrados ao público passariam por uma seleção para saber qual das quatro cenas de 15 minutos tem potencial para se transformar em um espetáculo. Por isso, as expectativas eram altas quanto à qualidade e ao acabamento das cenas, que não decepcionaram.

A noite começou com a cena “Nem o Pipoqueiro”, com direção de Patricia Teles e atuação de Cristina Madeira, Fabiana Brasil e Mariana Teixeira. A opção do coletivo foi levar para o palco os questionamentos acerca do próprio fazer teatral, tendo como ponto de partida a situação de três atrizes que aguardam o terceiro sinal chegar.

O humor nasce da identificação do constrangimento do público em ver aquelas figuras sem saber o que fazer, enquanto “esperam o público chegar”. É justamente nessa tentativa de representar a não-representação que reside o principal problema da cena, que não consegue de fato “ignorar” o público como se pretende afirmar.  Mas, ao mesmo tempo, é esse mesmo elemento que provoca a identificação com platéia, ao lançar “piadas” relacionadas ao ambiente teatral da cidade e à dificuldade de se produzir teatro no país – questão potencializada na utilização do vídeo, mas que não vai além do lugar comum.

O senão fica também por conta da dramaturgia, que não avança para um outro lugar, limitando-se ao questionamento que é muito particular a esse universo teatral e aparentemente trazendo para a cena e para o texto as próprias dificuldades que as criadoras encontraram ao longo do caminho… Como cena, ela se resolve. Mas parece não haver vertentes para a expansão rumo à criação de um espetáculo.

“E Peça que nos Perdoe” foi a segunda cena a entrar no palco. A proposta era mostrar uma madrugada que cria pesadelos, conflito e solidão. A atmosfera “soturna” já começa a ser construída pela penumbra que enche o palco enquanto os personagens cobertos com lençol branco cruzam o palco. Aos poucos, essas personas são apresentadas ao público numa espécie de cortejo fúnebre, que diz muito sobre o conceito no qual a cena iria se desenvolver.

O trabalho mescla elementos da dança-teatro com uma estética marcada por toques expressionistas, com um desenho em preto e branco, em um jogo entre os personagens que revela suas obsessões, desejos e pecados relegados ao inconsciente. A cena ganha potência pela composição plasticamente bem resolvida na utilização do espaço, assim como na utilização dos objetos na criação de cenários.  Se a dramaturgia peca em alguns momentos por não evidenciar a relação presente entre cada um dos personagens, a encenação de Lira Ribas demonstra maturidade em suas escolhas formais e na composição coreográfica de toda a cena.

Logo depois foi a vez dos atores Francis Severino e João Filho ocuparem o palco com “O Quintal”. Com direção de Joaquim Elias, a cena consegue ser simples, divertida e comovente ao mesmo tempo. A sensação é de que a dramaturgia de João Filho foi beber nas metáforas poéticas de Manoel de Barros, devido à profundidade e leveza que consegue reunir na escolha das palavras ao abordar a relação de dois irmãos que aguardam o retorno do pai, que um deles sabe que não irá voltar. É numa espécie de prólogo que esse universo é apresentado à platéia.

Os dois atores demonstram domínio do texto, dos objetos que utilizam em cena para compor o espaço e, principalmente, uma grande sintonia entre eles, fundamental para acreditarmos na relação dos personagens que defendem.

Para encerrar a noite, “Estudos para um Melodrama”, com direção de Marcelo Veronez. Um dos grandes méritos da cena é conseguir se apropriar da linguagem do melodrama e parodiá-la sem desrespeitá-la. A começar pelo prólogo em que Marlon Brando aparece no vídeo contracenando com a atriz em cena, uma bela solução para apresentar e levar o público para dentro do universo que iriam representar.

A dramaturgia consegue não apenas contar a história da cena em si, como também incluir elementos tão caros ao gênero, numa metalinguagem inteligente e bem-humorada. O tom de mistério que cerca toda a encenação é também um bom achado para caber o desfecho “trágico” de um verdadeiro melodrama. A escolha do tom narrativo em alguns momentos reforçava ainda mais a sensação de que a cena era mesmo uma “radionovela”, ao mesmo tempo que colaborava para a construção e desconstrução desses opostos entre a paródia e a “verdadeira” representação.  As escolhas conceituais estavam todas harmonicamente reunidas e ancoradas pela atuação do elenco.