BOAS EXECUÇÕES, SEM ALTOS NÍVEIS DE DIFICULDADE

25/06 – Por Soraya Belusi

O Festival de Cenas Curtas tem como uma de suas principais características o estímulo à experimentação – de linguagens, funções e poéticas. Outra marca dessas doze edições é o espírito competitivo – assim como no mundo dos esportes, com “fair play”, na melhor lógica do vença o melhor. Esse preâmbulo é apenas para apontar o caminho pelo qual escolhi lançar meu olhar sobre as quatro cenas apresentadas na noite de sábado.

“Rosângelas” abriu a jornada de apresentações. Inspiradas e penetradas pelas histórias reunidas e recriadas pela artista plástica Rosângela Rennó e pela escritora Alicia Penna no diário-colagem “Espelho Diário”, as atrizes Antônia Claret e Renata Andréa levaram para a cena um diálogo não-realista no que se refere à construção das personagens – ou seria uma apenas com suas duplas (ou seriam múltiplas) facetas? É justamente essa pergunta/possibilidade apresentada na dramaturgia e no jogo entre as atrizes que talvez mais traduza e potencialize o diálogo entre a cena apresentada e o objeto inicial de sua inspiração.

O que vou chamar aqui de “exercícios de dificuldade”, em referência aos procedimentos de uma modalidade esportiva tão cara a mim, são as tentativas de elaboração (ou questionamento, desconstrução…) das camadas que compõem a cena – assim como numa prova de ginástica olímpica, em que o nível de complexidade do que se apresenta é um dos determinantes para a “nota” final. As criadoras da cena “Rosângelas” optaram
por uma abordagem não realista no trabalho das atrizes, que construíram ações físicas que iam se repetindo e se ressiginificando ao longo da encenação. Isso permitiu ainda um jogo rítmico interessante ao trabalho, com partituras tanto sonoras quanto corporais.
A dramaturgia e o elenco trafegavam com naturalidade pelos diferentes momentos que a cena pedia, pela narração, pela quebra da quarta parede, a brincadeira do “metateatro”.

“Rosângelas” se propõe a ser uma cartografia de pequenos acontecimentos, mas é aí que peca na execução. Em alguns momentos, a sensação é de que a mise-em-scene estava mais bem resolvida que o conteúdo da cena em si. Quando consegue nos mostrar as mínimas pílulas de poesia (seja quando fala do abismo ou do fiapo que nos separa da vida e da morte ou da companhia silenciosa de um peixe), a cena cativa com sua mistura de humor e delicadeza.

Na seqüência, foi a vez de “Entre Comédias”, trabalho de quatro atores de Londrina, que parte da pesquisa dos tipos da commedia dell’arte em diálogo com o texto “A Comédia dos Erros”, de William Shakespeare. Aquele preâmbulo inicial, aqui, cabe muito bem como ponto de partida. Se uma das premissas do evento é justamente experimentar, significa tentar uma jogada mais ousada para marcar o gol. Foi justamente isso o que faltou ao grupo de criadores.

Embora com trabalhos defensáveis na utilização das máscaras expressivas (bom domínio corporal e vocal de alguns atores, assim como os estados corporais de cada personagem e a triangulação com a platéia), faltou à cena a pretensão (voltaremos a falar desse termo…) de lançar desafios ao público e, até mesmo, aos seus criadores. A sensação foi de que, após os minutos iniciais, o trabalho foi perdendo força e, consequentemente, a atenção do público. Levando em consideração o nível de elaboração a que o teatro contemporâneo atingiu e propõe, num espaço de experimentação exige-se um pouco mais que um “exercício bem realizado”.

Grande era a expectativa em torno da terceira cena apresentada na noite, “Pretensão”. Primeiro, pelo time de criadores, que inclui o diretor Byron O’Neill (talentoso artista nas linguagens do vídeo e do teatro e que já foi responsável por bons momentos do Cenas Curtas) e o ator Alexandre Cioletti (tão talentoso quanto o parceiro de criação e de trajetória respeitável no teatro). Depois, com uma sinopse dessas (“A pretensão de um ovo é ser no mínimo uma galinha. E isso é muito pretensioso”), não se sabe o que vem pela frente.

É no universo do absurdo que identifico o trabalho. A começar pela imagem inicial, com a Coca-Cola em cima de uma barra de gelo iluminada pelo foco de luz. E é assim que a coisa se desenvolve, por exemplo, com a entrada em cena de um homem de bata carregando um vaso sanitário. O coletivo constrói um jogo divertido e inteligente no jogo de palavras e de sentidos (seja no que se refere à discussão do que se pretende ser a própria cena, sobre o conceito de pretensão) e tem como ponto alto o diálogo entre os dois bons atores, Cioletti, já citado, e Renato Parara. Mas, embora tenha “viradas” surpreendentes no rumo da cena, o trabalho parece ir se perdendo ao longo do caminho, saindo do que poderia ser uma brincadeira-reflexão-filosófica-teatral para uma linha do besteirol que diminui “as pretensões” do trabalho que, além de ovo, tinha tudo para se tornar, de fato, galinha.

Ana Fuchs, de Porto Alegre, teve a missão de encerrar a noite de apresentações. E, enfim, chegou o clown a esta edição do Cenas Curtas (a linguagem está sempre presente no evento e proporciona, tradicionalmente, bons momentos). “Amostra Grátis” mostrou uma atriz da linguagem do clown que entende seu objeto de pesquisa com inteligência, domínio dos elementos do jogo do palhaço, da relação com a plateia, do tempo da “piada”, da utilização dos opostos emocionais. Para contar a história dessa solitária palhaça que busca o amor a qualquer custo, ela constrói uma dramaturgia bem redondinha, com a preparação para o encontro, a sedução do objeto de conquista, a alegria da ilusão do amor até chegar ao fracasso de se deparar com a realidade de que ele não existe.

A criadora, com todas as qualidades que demonstrou em cena, parecia confortável em suas escolhas, o que pode soar como algo seguro demais. Assim como no circo, fica a vontade de ver algo que lhe coloque num estado de alerta, na fronteira do perigo. Talvez, um elemento que podia ter feito parte de todos os trabalhos da noite: o pulo vertiginoso rumo ao abismo (claro, com a rede embaixo)!

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